Afirmo sem o mínimo medo de errar: tem gente que nunca sentou em um banco de escola para aprender ler, escrever e contar que é muito, mas muito, inteligente e sábio que muito "dotô" com décadas de estudo. "Então a Educação não tem nenhum valor?", questionarão os radicais extremistas. Não, cara-pálida, não! A Educação é fundamental em qualquer sociedade que se pretenda ser evoluída. Ela é o alicerce e o trampolim para todos que sonhem em usufruir de uma vida mais bem abençoada pelos Céus, com conforto e credibilidade dos pares. Mas como tudo na vida, há exceções, figuras brilhantes que se destacam na multidão pelo seu saber adquirido no decorrer da existência com totais perspicácia, discernimento e sagacidade, mesmo sem o estudo formal das escolas. São muitos os exemplos dessas mentes poderosas, um deles o senhor Antônio Gonçalves da Silva, que cultivando a terra seca em seu pedacinho de chão em Assaré, cidadezinha do Sertão no interior do estado do Ceará com pouco mais de 23 mil habitantes, conseguiu se transformar em um dos maiores poetas do mundo, mesmo sem ser "letrado".
O pobre sertanejo repentista tocador de viola e mestre dos versos da região do Cariri, chamado carinhosamente pelos amigos e familiares de "Senhorzinho" e eternizado como "Patativa do Assaré", nasceu em 5 de março de 1909 na Serra de Santana em Assaré e ali morreu em 8 de julho de 2002. O pássaro fringilídeo, de cor cinzenta e canto muito apreciado de nome Patativa acabou lhe emprestando o apelido por conta do povo da cidade. E aí o Patativa do Assaré alçou voo para o mundo através de seus poemas, alguns tornados músicas como "Vaca Estrela e Boi Fubá", por Fagner, e "A Triste Partida", por Luiz Gonzaga. Patativa do Assaré nos presenteou com vários livros mostrando a verdadeira face do Brasil ainda desconhecido por muitos, ganhou prêmios, peça de teatro, documentário, homenagens e até títulos de "Doutor Honoris Causa". Virou estátua, nome de rodovia, de memorial, de biblioteca pública e até de enredo de escola de samba.
O roceiro pobre e iletrado, vivendo na casinha de taipa no meio da roça no Sertão do Cariri, mesmo com visão prejudicada, conseguia enxergar de longe o óbvio, a imensa injustiça social que nunca acaba em nosso Brasil, abordando com firmeza e contundência essa praga nacional em seus versos, coisa que muitos cultos, doutos e eruditos infelizmente não conseguem enxergar. Viva Seu Antônio Gonçalves da Silva, o gigante Patativa do Assaré!
Um grande abraço espinosense.
"O Poeta da Roça"
Sou fio das mata, cantô da mão grossa
Trabaio na roça, de inverno e de estio
A minha chupana é tapada de barro
Só fumo cigarro de paia de mio
Trabaio na roça, de inverno e de estio
A minha chupana é tapada de barro
Só fumo cigarro de paia de mio
Sou poeta das brenha, não faço o papé
De argum menestrê, ou errante cantô
Que veve vagando, com sua viola
Cantando, pachola, à percura de amô
Não tenho sabença, pois nunca estudei
Apenas eu sei o meu nome assiná
Meu pai, coitadinho! vivia sem cobre
E o fio do pobre não pode estudá
Meu verso rastero
Singelo e sem graça
Não entra na praça
Não entra na praça
No rico salão
Meu verso só entra no campo da roça e dos eito
E às vezes, recordando feliz mocidade
Canto uma sodade
que mora em meu peito
"Autobiografia"
"Autobiografia"
Mas porém como a leitura
É a maió diciprina
E veve na treva iscura
Quem seu nome não assina
Mesmo na lida pesada,
Para uma escola atrasada
Tinha uma parte do dia,
Onde estudei argum mês
Com um veio camponês
Que quase nada sabia.
Meu professô era fogo
Na base do português,
Catálogo, era catalôgo,
Mas grande favô me fez.
O mesmo nunca esqueci,
Foi com ele que aprendi
Minhas premêra lição,
Muito a ele tô devendo,
Saí escrevendo e lendo
Mesmo sem pontuação.
Depois só fiz meus estudo,
Mas não nos livro escola
Eu gostava de lê tudo,
Revista, livro e jorná.
Com mais uns tempo pra frente,
Mesmo vagarosamente,
Não errava nenhum nome.
Lia no claro da luz
As pregação de Jesus
E as injustiça dos home.
"O Que Mais Dói"
Para uma escola atrasada
Tinha uma parte do dia,
Onde estudei argum mês
Com um veio camponês
Que quase nada sabia.
Meu professô era fogo
Na base do português,
Catálogo, era catalôgo,
Mas grande favô me fez.
O mesmo nunca esqueci,
Foi com ele que aprendi
Minhas premêra lição,
Muito a ele tô devendo,
Saí escrevendo e lendo
Mesmo sem pontuação.
Depois só fiz meus estudo,
Mas não nos livro escola
Eu gostava de lê tudo,
Revista, livro e jorná.
Com mais uns tempo pra frente,
Mesmo vagarosamente,
Não errava nenhum nome.
Lia no claro da luz
As pregação de Jesus
E as injustiça dos home.
"O Que Mais Dói"
O que mais dói não é sofrer saudade
Do amor querido que se encontra ausente
Nem a lembrança que o coração sente
Dos belos sonhos da primeira idade.
Não é também a dura crueldade
Do falso amigo, quando engana a gente,
Nem os martírios de uma dor latente,
Quando a moléstia o nosso corpo invade.
O que mais dói e o peito nos oprime,
E nos revolta mais que o próprio crime,
Não é perder da posição um grau.
É ver os votos de um país inteiro,
Desde o praciano ao camponês roceiro,
Pra eleger um presidente mau.
"O Inferno, o Purgatório e o Paraíso"
Pela estrada da vida nós seguimos,
Cada qual procurando melhorar,
Tudo aquilo, que vemos e que ouvimos,
Desejamos, na mente, interpretar,
Pois nós todos na terra possuímos
O sagrado direito de pensar,
Neste mundo de Deus, olho e diviso
O Purgatório, o Inferno e o Paraíso.
Este Inferno, que temos bem visível
E repleto de cenas de tortura,
Onde nota-se o drama triste horrível
De lamentos e gritos de loucura
E onde muitos estão no mesmo nível
De indigência, desgraça e desventura,
É onde vive sofrendo a classe pobre
Sem conforto, sem pão, sem lar, sem cobre.
É o abismo do povo sofredor,
Onde nunca tem certo o dormitório
É sujeito e explorado com rigor
Pela feia trapaça do finório
É o inferno, em plano inferior,
Mas acima é que fica o Purgatório,
Que apresenta também sua comédia
E é ali onde vive a classe média.
Este ponto também tem padecer,
Porém seus habitantes é preciso
Simularem semblantes de prazer,
Transformando a desdita num sorriso.
E agora, meu leitor, nós vamos ver,
Mais além, o bonito Paraíso,
Que progride, floresce e frutifica,
Onde vive gozando a classe rica.
Este é o Éden dos donos do poder,
Onde reina a coroa da potência.
O Purgatório ali tem que render
Homenagem, Triunfo e Obediência.
Vai o Inferno também oferecer
Seu imposto tirado da indigência,
Pois, no mastro tremula, a todo instante,
A bandeira da classe dominante.
É o Inferno o teatro do agregado
E de todos que vivem na pobreza,
Do faminto, do cego e do aleijado,
Que não acham abrigo nem defesa
E é também causador do triste fado
Da donzela repleta de beleza
Que, devido à cruel necessidade,
Vende as flores de sua virgindade.
Que tristeza, que mágoa, que desgosto
Sente a pobre mendiga pela rua!
O retrato da dor no próprio rosto,
Como é dura e cruel a sorte sua!
Com o corpo mirrado e mal composto,
A coitada chorosa continua
A pedir, pelas praças da cidade:
"Uma esmola, senhor, por piedade!"
Para que outro estado mais precário
Do que a vida cansada do roceiro?
Sem gozar do direito do salário,
Trabalhando na roça o dia inteiro,
Nunca pode ganhar o necessário,
Vive sempre sem roupa e sem dinheiro,
E, se o inverno não vem molhar o chão,
Vai expulso da roça do patrão.
Como é triste viver sem possuir
Uma faixa de terra para morar
E um casebre, no qual possa dormir
E dizer satisfeito: "este é meu lar".
Ninguém pode, por certo, resistir
Tal desgraça na vida sem chorar.
Se é que existe inferno no outro mundo
Com certeza, o de lá é o segundo!
Veja bem, meu leitor, que quadro triste,
Este inferno que temos nesta vida,
O sofrimento atroz dele consiste
Em viver sem apoio e sem guarida.
Minha lira sensível não resiste
Descrever tanta coisa dolorida
Com as rimas do mesmo repertório,
Quero um pouco falar do Purgatório
Purgatório da falsa hipocrisia,
Onde vemos um rosto prazenteiro
Ocultando uma dor que o excrucia
E onde vemos também um cavalheiro
Usar terno de linda fantasia,
Com o bolso vazio de dinheiro:
Pra poder trajar bem, até se obriga
Dar, com jeito, uma prega na barriga.
Purgatório infeliz do desgraçado,
Que trabalha e faz tudo o que é preciso
No comércio, lutando com cuidado,
Com desejo de entrar no Paraíso,
Porém quando termina derrotado,
Fracassado, com grande prejuízo,
Desespera, enlouquece, perde a bola
E no ouvido dispara uma pistola
Ali vemos um gesto alegre e lindo
Disfarçando uma dor, uma aflição,
Afirmando gozar prazer infindo
De esperança, de sonho e de ilusão.
Mas, enquanto esses lábios vão sorrindo,
Vai chorando, no peito, o coração.
É um mundo repleto de amarguras,
Com bastante aparência de venturas.
Veja agora leitor que diferença
Encontramos no lindo Paraíso:
O habitante não fala de sentença
Tudo é paz, alegria, graça e riso.
Tem remédio e conforto, na doença
E, se a morte lhe surge, de improviso,
Quando morre inda deixa por memória
Uma lousa, contando a sua glória.
Neste reino, que cresce e que vigora,
Vive a classe feliz e respeitada,
Tem tudo o que quer, a toda hora,
Pois do belo e do bom não falta nada,
Tem estrela brilhante e linda aurora,
Borboletas azuis, contos de fada
E, se quer gozar mais a vida sua,
Vai uns dias passar dentro da lua.
O Paraíso e o ponto culminante
De riqueza, grandeza e majestade,
Ali o homem desfruta ouro e brilhante,
Vive em plena harmonia e liberdade,
Tem sossego, conforto e tem amante,
Tudo quanto há de bom tem à vontade
E a mulher, que possui corpo de elástico,
Para não ficar velha, vai ao plástico.
Já mostrei, meu leitor, com realeza,
Pobres, médios e ricos potentados,
Na linguagem sem arte e sem riqueza.
Não são versos com ouro burilados,
São singelos, são simples, sem beleza,
Mas, nos mesmos eu deixo retratados,
Com certeza, verdade e muito siso,
O Purgatório, o Inferno e o Paraíso.
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