Por vezes e vezes, especialmente quando ainda bem jovem, não tive a capacidade e a inteligência suficientes para compreender completamente algumas histórias contadas em produções cinematográficas. O tempo passou, envelheci, e ainda me esforço para tentar entender totalmente os pormenores contidos em filmes de alta complexidade narrativa. E não me envergonho disso, de maneira alguma. Por isso é que adoro trocar ideias e discutir quaisquer assuntos interessantes com pessoas bem mais inteligentes, cultas e sábias, o que me só me traz prazer, cultura e aprendizado. Meu querido amigo baiano, professor José da Conceição Santana, é uma dessas pessoas, uma fonte inesgotável de saber.
Assim é que fui ao cinema na noite desta terça-feira pós Carnaval assistir ao filme "Mickey 17" com a mente aberta e centrada em não perder nenhuma fala ou ato dos personagens, na concentração total para assimilar bem todas as mensagens explícitas e implícitas na produção baseada no livro de Edward Ashton ("Mickey 7") e com direção do criativo cineasta sul-coreano Bong Joon-ho, detentor de um Oscar de Melhor Filme com "Parasita" em 2020, o primeiro em língua não-inglesa a vencer o principal prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.
A história é surreal. E é para fazer trabalhar os nossos neurônios. Nada contra aqueles filmes de puro entretenimento, com ação em tempo integral, com lutas em série, perseguições frenéticas de potentes máquinas automotivas, tiros em abundância e explosões sem moderação, mas filmes com roteiros inteligentes que nos fazem refletir sobre o passado, presente e futuro da Humanidade, sempre serão um bálsamo para minha mente já bastante viajada no tempo e no espaço. E é mais que preciso aproveitar a chance para utilizar o cérebro para raciocinar, enquanto ainda é grátis.
No filme de ficção científica futurista, o jovem pobre e endividado Mickey Barnes (Robert Pattinson) se alista em um programa espacial de colonização que o enviará ao espaço, ao gelado planeta de Niflheim, onde sua tarefa principal será atuar como cobaia em experimentações que poderão levá-lo à morte por várias vezes, sendo ressuscitado e clonado como um papel impresso na impressora, com boa parte de suas memórias recuperadas, tudo vendido como ideia em prol do avanço da humanidade. Para fugir de um insensível e violento agiota, Darius Blank (Ian Hanmore), Mickey se apresenta em um projeto espacial para assumir a função de "descartável", sem saber direito o que isto significará. Assina um contrato sem ler e passa a ser uma simples matéria para experimentos científicos, com mortes seguidas e reimpressão do seu corpo em impressora supermoderna.
Para o apreciador de cinema curioso e intelectual, pode ser que você até deteste o filme, o que é compreensível, mas tenho certeza que sairá da sala escura com uma necessidade básica de refletir profundamente sobre o que sofrerá a Humanidade em um futuro bem próximo, visto que já presentemente esta está dominada pelos efeitos benéficos e maléficos da poderosa tecnologia. O que será dos seres humanos muito em breve, com possibilidades as mais diversas sobre seus corpos e mentes afetadas pela IA-Inteligência Artifical, por vezes completamente engambelados por influentes líderes políticos, econômicos e religiosos canalhas, ambiciosos, inescrupulosos, ardilosos e hipócritas? Se já vemos nos tempos atuais tanta gente sendo utilizada como manada de fanáticos, o que será no futuro? Os seres humanos de menor poder aquisitivo, trabalhadores comuns, serão apenas mercadorias numeradas descartáveis para aumentar mais e mais a fortuna e o poder dos poderosos? Se alguém sair do cinema com o pensamento de tirar um pouquinho de tempo para refletir sobre estas muitas possibilidades, já terá valido a pena a criação do ótimo cineasta sul-coreano Bong Joon-ho.
ELENCO DE MICKEY 17
Robert Pattinson - Mickey Barnes
Naomi Ackie - Nasha
Mark Ruffalo - Kenneth Marshall
Steven Yeun - Timo
Toni Collette - Ylfa
Anamaria Vartolomei - Kai Katz
Michael Monroe - Matthew
Patsy Ferran - Dorothy
Cameron Britton - Arkady
Samuel Blenkin - Borrower
Ian Hanmore - Darius Blank
Daniel Henshall - Preston
Ellen Robertson - Jennifer Chilton
Edward Davis - Alan Manikova
Angus Imrie - Agent Charlie
O pensar é um processo especialmente necessário e extraordinário que nos permite descobertas cruciais sobre a nossa existência. Saber com toda consciência o lugar de onde viemos, quem realmente somos neste imenso mundo e para onde vamos na nossa frágil e tempestuosa caminhada terrena, pode nos aproximar bem mais da felicidade divina prometida por Deus, sem sermos domesticados, engambelados e utilizados como massa de manobra para o atingimento dos ideais, não nossos e dos nossos entes queridos, bem como da imensa maioria da população mundial, mas de poucos espertalhões astutos e de ótima lábia que engambelam facilmente os de mentes mais suscetíveis e vulneráveis. Que estejamos sensatos, atentos e com ótima capacidade de discernimento para não nos enfiarmos em regimes cruéis e totalitários como o maldito nazismo, liderados por figuras estúpidas, arrogantes e ambiciosas que se utilizam de práticas radicais, desumanas, embusteiras, extremistas e intolerantes para angariar apoio irrestrito dos simplórios e incautos.
É certo que "Mickey 17" não é uma obra-prima do cinema, porém o filme nos alerta para a já existente ideia e realidade de desvalorização da vida humana pelos sistemas econômicos focados apenas no lucro e na riqueza. Enquanto um mínimo de bilionários possuem uma fortuna quase incalculável, milhões de irmãos humanos passam fome e dificuldades de sobrevivência no mundo, um cenário desolador, injusto e inaceitável. Eu nunca vou me conformar com um absurdo deste!
Concordo inteiramente com o saudoso e genial artista brasileiro Francisco "Chico" Anysio de Oliveira Paula Filho (Maranguape (CE), 12 de abril de 1931 – Rio de Janeiro (RJ), 23 de março de 2012), que escreveu este texto:
"Andando há 40 anos por este país, catando dinheiro para levar pra casa, eu aprendi a acreditar. Acreditar na terra, no homem, na chuva, na bênção, na semente, no fruto, no coração, na mente… na inteligência. Aprendi, com o meu povo, que quando uma coisa está muito séria, o melhor que se faz é brincar com ela. E, naquelas tardes terríveis, sozinho num quarto de hotel, esperando a hora do show, eu comecei a desenhar o pais dos meus sonhos. Um país onde cada lavrador tenha um par de bois para puxar seu arado e que de tarde, ao voltar para casa, encontre um par de filhos o esperando e à noite quando for dormir, tenha um par de pernas para amar; no país dos meus sonhos, todo pobre vai comer, todo hospital terá remédios, todo aluno terá colégio, todo professor ganhará um salário decente e todo policial apenas prenderá os bandidos, em vez de os ajudar a matar e a roubar; no país dos meus sonhos todo cego vai ver, todo surdo vai ouvir e todo mudo vai ver e ouvir coisas tão lindas que nem será preciso dizer nada; no país dos meus sonhos a integração do homem com a natureza será tanta que eu chego a imaginar uma árvore dizendo a um homem: “Você me tratou tão bem, foi tão legal comigo, que eu gostaria de me transformar na mesa da sua casa, nas cadeiras onde sua família sentará, no berço do seu filho”. No país dos meus sonhos, o homem branco, afinal, vai descobrir que o coração do negro é do tamanho do seu e o sangue da mesma cor. O país dos meus sonhos um dia será verdade. E ele será tão feliz que nem vai precisar de mim para fazer rir um pouco. Não faz mal. Eu perco o emprego, mas não perco o meu sonho."
Um grande abraço espinosense.