A criativa dupla de compositores Aldir Blanc e Maurício Tapajós nos ensina, nos versos da sua composição "Querelas do Brasil", encantadoramente gravada ao vivo pela diva Elis Regina no álbum "Transversal do Tempo" em 1978, que "o Brazil não conhece o Brasil, o Brasil nunca foi ao Brazil". A irônica obra musical lista um tanto de gentes e bichos e coisas do nosso lindo e abençoado país, este ser tão desconhecido ainda por imensa parcela da nossa população. Mesmo na era da tecnologia, onde as informações chegam com muito mais rapidez, volume e amplidão, a ignorância que reina entre nós é abissal. Desconhecemos nossos homens dignos que ajudaram a construir nossa Nação, desconhecemos nossos artistas talentosos, e o pior, desconhecemos quase completamente nossa História.
A recente produção cinematográfica intitulada "Ainda Estou Aqui", que encantou o Brasil e correu o mundo, chegando ao ponto de conseguir o prêmio inédito do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, fez enorme favor ao país quando escancarou a todo o mundo os acontecimentos reais e irrefutáveis da violência e opressão que destruiu vidas durante a maldita ditadura civil-militar que durou longos 21 anos. Houve ranger de dentes, tentativa de boicote e ataques covardes e furiosos contra a obra, mas nada apagou a força da produção e da História nela contada de forma tão bonita, verdadeira e comovente. O filme ganhou o mundo, com prêmios e mais prêmios recebidos. Mas ele é só mais um filme que conta nosso passado tão ignorado por tantos. Existem muitos outros produzidos no passado que nos mostram episódios reais e fundamentais para o entendimento da nossa tão amada terra natal.
Alguns filmes que contam fatos da nossa trajetória política, econômica e social:
"Ganga Zumba", de Cacá Diegues, lançado em 1963
"Xica da Silva", de Cacá Diegues, lançado em 1976
"Revolução de 30", de Silvio Back, lançado em 1980
"Os Anos JK – Uma Trajetória Política", de Sílvio Tendler, lançado em 1980
"Memórias do Cárcere", de Nelson Pereira dos Santos, lançado em 1984
"Jango", de Sílvio Tendler, lançado em 1984
"Muda Brasil", de Oswaldo Caldeira, lançado em 1985
"Lamarca", de Sérgio Resende, lançado em 1994
"Carlota Joaquina, Princesa do Brazil", de Carla Camurati, lançado em 1995
"Guerra dos Canudos", de Sérgio Rezende, lançado em 1997
"Baile Perfumado", de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, lançado em 1997
"Carandiru: O Filme", de Hector Babenco, lançado em 2003
"Olga", de Jayme Monjardim, lançado em 2004
"Zuzu Angel", de Sérgio Resende, lançado em 2006
"O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias", de Cao Hamburguer, lançado em 2006
"Batismo de Sangue", de Helvécio Ratton, lançado em 2007
"Dossié Jango", de Paulo Henrique Fontenelle, lançado em 2013
"1964 – Um Golpe Contra o Brasil", de Alípio Freire, lançado em 2013
"Getúlio", de João Jardim, lançado em 2014
"Real: O Plano Por Trás da História", de Rodrigo Bittencourt, lançado em 2017
"O Processo", de Maria Augusta Ramos, lançado em 2018
"Ângela", de Hugo Prata, lançado em 2023
"O Sequestro do Voo 375", de Marcus Baldini, lançado em 2023
Há poucos dias, resolvi assistir novamente a um filme que narra um episódio insólito, quase inacreditável, que mudou completamente a relação entre o nosso país e os poderosos Estados Unidos da América. O filme "O Que É Isso, Companheiro?", inspirado no livro de mesmo nome do escritor e jornalista Fernando Gabeira e dirigido pelo cineasta Bruno Barreto, conta o evento real ocorrido em setembro de 1969, quando alguns poucos jovens corajosos e sonhadores tiveram a audácia de sequestrar o embaixador americano Charles Burke Elbrick. O grupo guerrilheiro formado por integrantes do MR8-Movimento Revolucionário 8 de Outubro e ALN-Ação Libertadora Nacional, fez uma emboscada na rua Marques, bairro do Humaitá, Rio de Janeiro (então Estado da Guanabara), raptando o embaixador do seu Cadillac e o levando em uma velha Kombi até o cativeiro, uma casa de nº 1.026 na rua Barão de Petrópolis, no Bairro Rio Comprido, também no Rio. Entre os jovens que, ingenuamente, acreditavam que conseguiriam combater e derrubar a maldita ditadura apelando para a luta armada, levantando fundos em assaltos a bancos, roubando armas de quarteis e delegacias de polícia e realizando sequestros, especialmente este, estavam Virgílio Gomes da Silva (conhecido como Jonas), Franklin Martins, Cid Queiroz Benjamin, Antônio Freitas Filho, Manoel Cyrillo, Paulo de Tarso Venceslau, João Sebastião Rios de Moura, João Lopes Salgado, Cláudio Torres, Sérgio Rubens Araújo Torres, Fernando Gabeira, Daniel Aarão Reis Filho e o veterano Joaquim Câmara Ferreira (conhecido como Toledo), e mais a única mulher participante, Vera Sílvia Magalhães. O sequestro ocorreu no dia do meu aniversário de 7 anos, 4 de setembro de 1969, e durou três dias, até o dia 7 de setembro, quando os sequestradores liberaram o embaixador Elbrick no meio da multidão na saída do Maracanã em dia de jogo, após terem atendidos pelo regime autoritário o pedido de libertação de 15 presos políticos e a leitura de um manifesto pelos principais órgãos de imprensa do país. Foram libertados Luís Travassos, José Dirceu, José Ibraim, Onofre Pinto, Ricardo Villas Boas, Maria Augusta Carneiro, Ricardo Zarattini, Rolando Fratti, João Leonardo Rocha, Agonalto Pacheco da Silva, Vladimir Palmeira, Ivens Marchetti, Flávio Tavares, Gregório Lourenço Bezerra e Mario Roberto Zanconato. Apenas os dois últimos não aparecem na famosa foto tirada antes do embarque no voo em um avião Hércules 56 da FAB (Força Aérea Brasileira) para o México. Onofre Pinto e João Leonardo da Silva Rocha foram assassinados pela ditadura no início dos anos 70.
Obviamente que toda peça cinematográfica inspirada em livros ou histórias verídicas tem a liberdade de se utilizar da tal licença poética, romantizando alguns fatos e ajustando personagens para conquistar a atenção dos espectadores. No filme "O Que É Isso, Companheiro?", alguns personagens foram alterados, como a presença da guerrilheira vivida pela atriz Fernanda Torres, que não existiu. E o jogo no Maracanã em que o embaixador Elbrick foi libertado na dispersão da torcida não foi entre Flamengo e Vasco, mas entre Fluminense e Cruzeiro, partida disputada pela Taça de Prata de 1969, com vitória do clube mineiro por 3 x 0, dois gols de Tostão e um de Dirceu Lopes.
A produção roteirizada por Leopoldo Serran em cima do conteúdo do livro escrito pelo Fernando Gabeira fez grande sucesso e acabou concorrendo ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1998. O elenco é recheado de ótimos atores, entre eles o norte-americano Alan Arkin, a Fernanda Torres, Matheus Nachtergaele, Caio Junqueira, Luiz Fernando Guimarães, Pedro Cardoso, Selton Mello, Cláudia Abreu, Alessandra Negrini, Fisher Stevens, Caroline Kava, Othon Bastos, Eduardo Moscovis, Marco Ricca, Mílton Gonçalves, Nélson Dantas e Fernanda Montenegro. Duas curiosidades: o cantor Lulu Santos faz uma pequena participação no papel de um policial militar e a música ficou a cargo do Stewart Copeland, baterista da banda The Police.
O filme do Bruno Barreto está disponível no catálogo da Amazon Prime e também na Globoplay. Além desse, sugiro a vocês assistirem à outra produção sobre o tema, o documentário "Hercules 56", de 2006, dirigido por Sílvio Da-Rin, disponível no endereço da rede social russa ok.ru, onde alguns dos presos políticos que participaram do sequestro ou que ganharam a liberdade aparecem ou dão depoimentos sobre o cenário conturbado da época.
Ressalte-se que todos os que cometeram atos criminosos durante a ditadura, ou antes e após ela, de ambos os lados, devem ou deveriam ser processados, responsabilizados, condenados e presos por seus crimes, mas sempre sob a proteção do devido processo legal, com direito amplo à defesa, sem tortura, humilhação, assassinatos ou "desaparecimentos".
Mesmo tendo consciência de que nem tudo mostrado na tela grande corresponde exatamente aos fatos reais, assistir a esses filmes que contam acontecimentos cruciais do nosso Brasil é de fundamental importância para conhecermos pelo menos um pouco da nossa História. A partir da incorporação dessas vitais informações é que devemos realizar profundas reflexões e procurar pesquisar e nos informar cada vez mais sobre o que de fato aconteceu no nosso país ao longo do tempo, exercitando o senso crítico e descobrindo razões para a ocorrência dos fatos que interferem inteiramente na vida e morte de todos nós. Conhecimento é coisa valiosa, assim como o discernimento e a descoberta da verdade.
Aceitar ou discordar dos fatos, tomando posições favoráveis ou contrárias, é liberdade que nos permite a Democracia, mas negar os acontecimentos é completa estupidez. A verdade deve sempre prevalecer!
Um grande abraço espinosense.
Manifesto escrito pelos sequestradores do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick:
"Grupos revolucionários detiveram hoje o sr. Charles Burke Elbrick, embaixador dos Estados Unidos, levando-o para algum lugar do país, onde o mantêm preso. Este ato não é um episódio isolado. Ele se soma aos inúmeros atos revolucionários já levados a cabo: assaltos a bancos, nos quais se arrecadam fundos para a revolução, tomando de volta o que os banqueiros tomam do povo e de seus empregados; ocupação de quartéis e delegacias, onde se conseguem armas e munições para a luta pela derrubada da ditadura; invasões de presídios, quando se libertam revolucionários, para devolvê-los à luta do povo; explosões de prédios que simbolizam a opressão; e o justiçamento de carrascos e torturadores.
Na verdade, o rapto do embaixador é apenas mais um ato da guerra revolucionária, que avança a cada dia e que ainda este ano iniciará sua etapa de guerrilha rural.
Com o rapto do embaixador, queremos mostrar que é possível vencer a ditadura e a exploração, se nos armarmos e nos organizarmos. Apareceremos onde o inimigo menos nos espera e desapareceremos em seguida, desgastando a ditadura, levando o terror e o medo para os exploradores, a esperança e a certeza da vitória para o meio dos explorados.
O sr. Burke Elbrick representa em nosso país os interesses do imperialismo, que, aliados aos grandes patrões, aos grandes fazendeiros e aos grandes banqueiros nacionais, mantêm o regime de opressão e exploração.
Os interesses desses consórcios de se enriquecerem cada vez mais criaram e mantêm o arrocho salarial, a estrutura agrária injusta e a repressão institucionalizada. Portanto, o rapto do embaixador é uma advertência clara de que o povo brasileiro não lhes dará descanso e a todo momento fará desabar sobre eles o peso de sua luta. Saibam todos que esta é uma luta sem tréguas, uma luta longa e dura, que não termina com a troca de um ou outro general no poder, mas que só acaba com o fim do regime dos grandes exploradores e com a constituição de um governo que liberte os trabalhadores de todo o país da situação em que se encontram.
Estamos na Semana da Independência. O povo e a ditadura comemoram de maneiras diferentes. A ditadura promove festas, paradas e desfiles, solta fogos de artifício e prega cartazes. Com isso, ela não quer comemorar coisa nenhuma; quer jogar areia nos olhos dos explorados, instalando uma falsa alegria com o objetivo de esconder a vida de miséria, exploração e repressão em que vivemos. Pode-se tapar o sol com a peneira? Pode-se esconder do povo a sua miséria, quando ele a sente na carne?
Na Semana da Independência, há duas comemorações: a da elite e a do povo, a dos que promovem paradas e a dos que raptam o embaixador, símbolo da exploração.
A vida e a morte do sr. embaixador estão nas mãos da ditadura. Se ela atender a duas exigências, o sr. Burke Elbrick será libertado. Caso contrário, seremos obrigados a cumprir a justiça revolucionária. Nossas duas exigências são:
a) A libertação de quinze prisioneiros políticos. São quinze revolucionários entre os milhares que sofrem as torturas nas prisões-quartéis de todo o país, que são espancados, seviciados, e que amargam as humilhações impostas pelos militares. Não estamos exigindo o impossível. Não estamos exigindo a restituição da vida de inúmeros combatentes assassinados nas prisões. Esses não serão libertados, é lógico. Serão vingados, um dia. Exigimos apenas a libertação desses quinze homens, líderes da luta contra a ditadura. Cada um deles vale cem embaixadores, do ponto de vista do povo. Mas um embaixador dos Estados Unidos também vale muito, do ponto de vista da ditadura e da exploração.
b) A publicação e leitura desta mensagem, na íntegra, nos principais jornais, rádios e televisões de todo o país.
Os quinze prisioneiros políticos devem ser conduzidos em avião especial até um país determinado - Argélia, Chile ou México -, onde lhes seja concedido asilo político. Contra eles não devem ser tentadas quaisquer represálias, sob pena de retaliação.
A ditadura tem 48 horas para responder publicamente se aceita ou rejeita nossa proposta. Se a resposta for positiva, divulgaremos a lista dos quinze líderes revolucionários e esperaremos 24 horas por seu transporte para um país seguro. Se a resposta for negativa, ou se não houver resposta nesse prazo, o sr. Burke Elbrick será justiçado. Os quinze companheiros devem ser libertados, estejam ou não condenados: esta é uma “situação excepcional". Nas "situações excepcionais", os juristas da ditadura sempre arranjam uma fórmula para resolver as coisas, como se viu recentemente, na subida da junta militar.
As conversações só serão iniciadas a partir de declarações públicas e oficiais da ditadura de que atenderá às exigências.
O método será sempre público por parte das autoridades e sempre imprevisto por nossa parte.
Queremos lembrar que os prazos são improrrogáveis e que não vacilaremos em cumprir nossas promessas.
Finalmente, queremos advertir aqueles que torturam, espancam e matam nossos companheiros: não vamos aceitar a continuação dessa prática odiosa. Estamos dando o último aviso. Quem prosseguir torturando, espancando e matando ponha as barbas de molho. Agora é olho por olho, dente por dente."
Ação Libertadora Nacional (ALN) / Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)