Em um incerto dia de férias em Espinosa, precisei ir ao Fórum entregar alguns documentos e aproveitei a oportunidade para reencontrar velhos amigos que lá trabalham e que há algum tempo não via: Núbia, Dai e Tatinho, entre outros. Enquanto aguardava o processamento dos documentos, visualizei uma placa afixada na parede em frente à entrada do órgão judiciário e passei a ler o seu conteúdo. Trata-se de um texto muito bonito escrito por Alberto Deodato, que ainda jovem trabalhou como Promotor de Justiça na cidade de Rio Pardo de Minas, por volta de 1921, época em que a cidade de Monte Azul ainda era Tremedal e Espinosa ainda se chamava Lençóis do Rio Verde.
Alberto Deodato Maia Barreto foi um advogado, jurista, escritor, jornalista, professor universitário e político brasileiro, nascido em Sergipe no ano de 1896. Residiu e trabalhou por muito tempo na capital mineira. Faleceu aos 81 anos de idade devido a um edema pulmonar, na cidade de Belo Horizonte, no dia 15 de agosto de 1978.
Em suas linhas escritas com perceptível carinho, Deodato tece elogios ao seu amigo José Cangussu (então falecido há poucos dias), como também fala da sua admiração por Espinosa, aquele "adorável recanto sertanejo" onde, naqueles tempos de intrigas e violentas brigas políticas, pairava um clima de paz e respeito às liberdades humanas, um verdadeiro oásis de calmaria no Sertão.
É uma pena que um importante documento da nossa história pareça inacessível e distante da maioria da população da cidade, desconhecido de quase todos. Espero que com essa simples postagem eu possa ajudar para que esse testemunho maravilhoso da nossa eterna hospitalidade chegue a uma boa parcela dos nossos conterrâneos e que a inteligência, a cordialidade e o amor de José Cangussu à nossa Espinosa jamais sejam esquecidos e se tornem nossa atitude rotineira.
Um grande abraço espinosense.
Confiram a íntegra do documento com a sua grafia original.
Cangussu
Por Alberto Deodato
Quando fui Promotor de Justiça na cidade do Rio Pardo de Minas, norte de Minas, a comarca era enorme. Ia quase das barrancas do Rio São Francisco aos limites da Bahia. Compreendia Tremedal e Lençóis do rio Verde, hoje duas comarcas, com o nome de Monte Azul, a primeira, e Espinosa, a segunda. A política andava brava, naqueles idos de vinte e um. De quando em quando, tiros pipocavam. Em Rio Pardo. Em Monte Azul. Até Salinas. De três em três meses, subia uma facção e caía a outra. Os vencidos tinham um asilo, fôsse de que partido fôsse, na pequena Espinosa. Era uma espécie de Suíça sertaneja. Plantada à beira do rio Verde, dando o costado para a cidade de Urandi, na Bahia. Quis conhecer esse adorável recanto sertanejo, onde havia tanto respeito pelas liberdades humanas. Tanta compreensão pela liberdade de crença. Devia haver qualquer cousa diferente. Vizinho de tanta gente agressiva, que vivia armada até os dentes. Onde, em cada casa pobre, havia um catre e uma carabina papo amarelo. Mineiros e baianos. Devia a paz de Espinosa ter qualquer cousa diferente. E fui vê-la. Quinze léguas a cavalo, de Rio Pardo até lá. Galguei a serra Geral, até Mato Verde. E, depois, a planície de aroeiras, braúnas e cactos, que atravessa Monte Azul. Um lagoa lírica de garças e iassanans à entrada da vila. Um lençol colorido sobre as águas tranqüilas. De aves e de flores aquáticas. Uma praçazinha. Muitas casas de platibanda. O mercado brasileiro do sertão. A igrejinha bonita. Essa era Espinosa, a cidade diferente. Desci na boa casa colonial do coronel Heitor Antunes, cujas filhas tiravam o curso dos melhores colégios de Belo Horizonte. Uma, a menina mais bonita daquelas bandas, acabara de se casar com o médico local. À noite, uma festa. Foi, então, que conheci José Cangussu que, anteontem, levei ao cemitério do Bonfim. Falou pela terra, na poesia de sua oração. E pelo povo, nos conceitos de sua filosofia. Disso de amor à liberdade da sua pequena comunidade. Do respeito às crenças políticas e religiosas dos seus semelhantes. Caí-lhe nos braços, comovido, de encontrar, tão longe, um moço de vinte e poucos anos, que se ilustrou sozinho. Um autodidata. E compreendi a grandeza de Espinosa. Desde esse dia selamos uma amizade que a morte acaba de separar. Tive em algumas oportunidades, os sufrágios de Espinosa, para a Assembleia Estadual e Câmara Federal. Tenho a impressão de que os não desmereci. O que mais me ligava, entretanto, ao grande morto era a sua ternura sertaneja. Nunca nos esquecemos. Faz dois meses que recebia mais de um presente seu. A mais gostosa lembrança da terra. As pinhas enormes, de polpa dourada, que, ao serem abertas, espirravam mel dos caroços, como se fossem favos de abelha. Estou certo de que o sertão mineiro não o esquecerá nunca. Hão de guardá-lo a terra e a sua gente, no culto da lembrança, como o guardarei na minha saudade permanente.
José Cangussu está imortalizado na história da cidade de Espinosa, com o seu imponente busto fincado na Praça Coronel Heitor Antunes, no nome do Fórum local e na avenida que o abriga. A inauguração da sua imagem se deu em outubro de 1971 (conforme a placa), portanto há exatos 43 anos. A fotografia tirada à época mostra muitas dignas figuras conhecidas da sociedade espinosense, entre elas Geraldo Anacleto, Normino Xavier, Zé Patinho, Dirceu Ribeiro, Ninho Freitas, Albino Ramos, Didi Freitas, Dudu Tolentino, Joaquim de Freitas, Bola Freitas, Adolar Ramos, Jajá Freitas, o então prefeito Alvacy de Freitas e sua esposa Cleide e o ainda adolescente Luiz Cláudio Ribeiro da Cruz, hoje advogado. Se você examinar com cuidado e atenção, descobrirá outros personagens marcantes da nossa cidade nesta velha fotografia.
Não consegui informações seguras sobre a data completa da morte de José Cangussu, apenas soube do ano, 1964, mas ele deverá sempre ser lembrado por todos nós, espinosenses, em todas as ocasiões, pois certamente é um dos grandes homens da nossa história.