Espinosa, meu éden

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quinta-feira, 10 de julho de 2025

3787 - A tragédia do Tamanduá

Belo Campo é uma cidadezinha localizada no Centro-Sul do estado da Bahia, com uma população de cerca de 17 mil habitantes. Ela se emancipou de Vitória da Conquista há 63 anos, no dia 22 de fevereiro de 1962. Neste local, em 1895, quando ainda era distrito do município de Conquista, aconteceu um dos mais violentos e sangrentos casos de desavenças políticas e familiares do Brasil. Era o tempo dos "coronéis", senhores de alto poder econômico e político que "mandavam prender e mandavam soltar", como afirmava um velho ditado popular da época. Os títulos de "Coronel", tão comuns no Brasil sobretudo na época da República Velha (1889-1930), eram dados a líderes poderosos das localidades do Sertão do país, geralmente grandes proprietários, donos de latifúndios, fazendeiros ou senhores de engenhos. Os senhores proprietários de terras, em troca de apoio aos governos de então, ganhavam mais terras, poder e também o título de "Coronel" da Guarda Nacional, o que marcou muitas vezes com sangue, dor e violência a vida social, política e eleitoral do Brasil de então, aquele país agrário, rústico, arcaico e sem lei onde o poder e a influência dos poderosos comandavam tudo e todos, tendo poder de decidir sobre vida e morte da população. Era tempo do "mandonismo político", do voto de cabresto e da perseguição truculenta aos adversários de ideias. Infelizmente, mesmo com muito menor intensidade, o absurdo parece continuar em alguns rincões do país, agora de maneira muito bem escamoteada, mas que já deveriam estar civilizados pela evolução natural.
Já naqueles tempos antigos no interior da Bahia, as mentiras fomentavam a discórdia entre as pessoas e famílias, agitando a rivalidade política. As malditas fake News já eram compartilhadas de forma covarde e canalha como sempre, mas em pequena proporção, no boca a boca, por inexistência de espaço e condições para a divulgação ampla das novidades e mexericos locais. Os boatos faziam acirrar ainda mais as divergências políticas, o que levavam membros de famílias rivais a se odiarem com exagerada força, o que às vezes descambava para a tragédia. Foi o que ocorreu na Fazenda Tamanduá.

Cidade baiana de Belo Campo


Diz a lenda que a viúva Dona Lourença de Oliveira Freitas, a "Sá Lourença", prima em primeiro grau da mulher do Coronel Domingos, Joaquina Fernandes de Oliveira, e casada com o falecido Timóteo José Freire, mãe dos três filhos Sérgio, Gasparino e Calixto, tinha como vizinho da sua Fazenda Pau de Espinho a Fazenda do Tamanduá, propriedade do poderoso Coronel Domingos Ferraz de Araújo, pai da esposa do Afonso Lopes Moitinho, Maria Ferraz de Oliveira. Um certo dia, houve um episódio violento que iniciou toda uma história sanguinária. Na divisa entre os terrenos das fazendas, os filhos de Sá Lourença se encontraram com o genro do Coronel Domingos que lhes acusou de roubo de uma vaca, encontrada morta na beira do terreno da Pau de Espinho. A acusação gerou uma enorme discussão e uma briga feia, em que dois filhos de Sá Lourença feriram com golpes de facão o Afonso. O caso permaneceu morno por algum tempo até que o valente Afonso, recuperado fisicamente e já nomeado subdelegado da cidade, decidiu ir prender os seus agressores com forte aparato policial da cidade. Na sede da Fazenda Pau de Espinho, com a recusa de se entregarem pacificamente à prisão, houve confronto armado e no final do tiroteio caíram mortos os dois filhos de Sá Lourença, Sérgio e Gasparino, fuzilados pelo Afonso e seus comparsas. Era dia 2 de janeiro de 1895. A viúva, revoltada por ver seus filhos amados mortos diante dos seus olhos, colocou e amarrou os corpos inertes em dois cavalos e se dirigiu ao longo de dez léguas à cidade de Conquista, parando diante da porta do cemitério e rogando, ao então intendente, com toda a dor e indignação de uma mãe ferida no coração e na alma, para que todos ouvissem, algo como "Vocês mataram meus filhos, trouxe os seus cadáveres aqui, se não quiserem enterrar eles, que então os comam".

Cemitério, local da tragédia do Tamanduá 


O filho sobrevivente de Sá Lourença, Calixtinho, com medo de também ser assassinado, fugiu para se esconder na região de Itabocas, hoje Itabuna, já prometendo que aquilo não ficaria sem resposta e que a vingança seria feita em breve. Depois de algum tempo por lá, foi acometido pela malária, decidindo retornar para ser tratado pela mãe em casa. Depois de ser curado escondido em casa, passou a elaborar a fria vingança. Com apoio financeiro, material e logístico de outros coronéis da região, adversários políticos do Coronel Domingos, saiu e contratou cerca de uma centena de experientes jagunços dispostos a qualquer ação violenta. Consciente da promessa de retaliação de Calixtinho, mas sem imaginar o tamanho do bando por ele formado, Sêo Domingos foi surpreendido na madrugada de 20 de outubro de 1895, durante a festa de casamento de uma filha sua, quando percebeu sobressaltado que a sede da Fazenda Tamanduá havia sido cercada por dezenas de cangaceiros armados. Negociaram sensatamente a saída de mulheres e crianças e logo após a retirada em segurança delas, iniciou-se um tiroteio feroz e intenso, com tiros disparados para todo lado. Ao final de longo tempo acuado com número menor de combatentes entrincheirados no casarão e com munição esgotada, com muitas baixas ao seu lado, o Coronel Domingos finalmente se rendeu. Com os inimigos desarmados, desnorteados e fragilizados em suas mãos, Calixtinho não teve a menor piedade. Todas as 22 pessoas apreendidas, entre familiares e camaradas, foram sumariamente assassinadas, um em especial com requintes de crueldade, o assassino dos irmãos de Calixtinho, Afonso Lopes Moitinho, aquele que se vangloriava de ter o "corpo fechado", só sendo morto quando tivesse o pescoço cortado em um pilão, o que realmente foi feito com golpes de foice pelos jagunços, entre eles "Nego Doido", "Cazuzinha Medrado", "Volta Grande", "Maranhão", "Manoel Pelado" e um bastante perigoso e violento, de apelido "Tomás Tomba Morro".



Alguns dos corpos dos 22 mortos ficaram expostos diante do casarão da fazenda por algum tempo até que os urubus os comessem, até que, atendendo a pedidos de pessoas isentas e sensatas da comunidade, foram autorizados os enterros dos falecidos ali mesmo no local. Calixtinho sumiu da região, fugindo para se esconder no Norte de Minas, onde tempos depois seria assassinado. Entre os mortos na tragédia do Tamanduá estavam Domingos Ferraz de Araújo (dono da Fazenda Tamanduá), Cassiano Ferraz de Oliveira (filho de Domingos), Afonso Lopes Moitinho (genro de Domingos), José de Oliveira Santos (genro de Domingos), João Lopes Ferraz Moitinho (sobrinho de Domingos), Gabriel Lopes Moitinho (sobrinho de Domingos), Pedro Lopes Moitinho (sobrinho de Domingos), Feliciano Lopes Moitinho (sobrinho de Domingos) e os camaradas Joaquim Ribeiro Lins, Paulino Ferraz de Oliveira, Julião Ferraz de Oliveira, Gabriel Ferraz de Oliveira, Manoel Bicudo, João Hipólito, Thimóteo, vulgo Boca Grande, Belmiro Lopes Moitinho, Cristiano da Queimada, Conceição Cordeiro, José Penam, Mariano Credo, Alberto de Lima e João Timóteo. Ainda não contente com o resultado, Calixtinho e seus jagunços ainda continuaram causando estragos por um breve tempo nas fazendas da região pertencentes a parentes e apoiadores do Coronel Domingos, matando animais, furtando e quebrando coisas.
Uma parente da família, Izabel Nunes Lopes Ferraz Moitinho, filha do Coronel Vitor Lopes Ferraz e de Dona Leocádia Araújo Ferraz, então apenas uma dona de casa preocupada em cuidar do marido e dos filhos, ao saber do ocorrido, ficou revoltada com a situação e decidiu também se vingar de Calixtinho. Com o título de Coronela Izabelinha, a pacata senhora se transformou rapidamente em uma das mulheres mais temidas da região. Aprendeu a atirar, conseguiu apoio de outros coronéis e formou um batalhão de jagunços para vingar a morte dos parentes assassinados. Até que um jagunço seu, de nome João Liro, enviado à procura do esconderijo de Calixtinho, o encontrou em lugarejo chamado Jussara, no Norte de Minas, onde o matou com um tiro na testa, sacramentando a vingança de Izabelinha, que muitos anos depois, aos 78 anos, faleceu em sua Fazenda Sobradinho em Belo Campo, virando lenda. 
A trágica história ocorrida em terras conquistenses até hoje gera dúvidas pela inconsistências de algumas informações, que sofreram variações ao longo do tempo, e das versões apresentadas por antigos moradores e familiares dos envolvidos. Uma boa fonte de pesquisa e de entendimento da extraordinária história é o documentário produzido pela cineasta Thaminy Brito que está disponível logo abaixo. Para me inteirar do caso, retirei informações e dados de várias fontes na Internet, especialmente da Dissertação de Arílson Ferraz Alves Flores no Programa do Curso de Pós-Graduação em Memória Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, denominada "Memória da Batalha do Tamanduá no Sertão da Ressaca (1895): Os Impactos da Morte na Coletividade".

Filme: "Tragédia do Tamanduá: Entre a História e a Memória
Direção: Thaminy Brito
Produção Executiva; Lays Dutra
Direção de Fotografia: Thaminy Brito
Montagem: Lays Dutra e Thaminy Brito
Edição, Captação e Mixagem de Áudio: Thaminy Brito
Assistente de Fotografia: Lucas Ferreira
Legendas: Leandro Santos
Personalidades Entrevistadas:
Sêo João de Aurélio (In memoriam) - 106 anos
Sêo Chico Bicicleta (In memoriam) - 104 anos
Professora Doutora Isnara Pereira Ivo (UESB) - Historiadora
Professor Doutor Ruy Medeiros (UESB) - Advogado
Professor Misael Lacerda - Historiador Belo-campense
O documentário foi financiado pela Lei Federal Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022) e com o apoio da Secretaria Municipal de Educação, Cultura, Esporte e Lazer de Belo Campo.

Neste nosso vasto, injusto e desigual Brasil, ainda vigora um sistema social que massacra os menos favorecidos em detrimento dos mais abastados da sociedade, com a violência atingindo em cheio as classes mais pobres. Nos anos recentes já tivemos um bom avanço na derrubada desta injustiça cruel, mas ainda temos muito o que combater, sobretudo a ignorância, a indiferença e a ganância dos integrantes da classe dominante que detém o controle dos bens de produção e do capital no país.
A Tragédia do Tamanduá nos ensina que a mentira e a ação sistemática e determinada de causar discórdia entre as pessoas, a falta de diálogo e compreensão, o descontrole emocional com ódio e uso da violência, somente leva a resultados nefastos e nocivos, com possibilidades enormes de ocorrência de fatalidades e desgraças, destruindo a paz, a harmonia e a vida de famílias inteiras. 
Que novas Tragédias do Tamanduá nunca mais aconteçam no nosso Brasil e que sigamos adiante em busca de paz, harmonia, justiça social e evolução!
Um grande abraço espinosense.