Espinosa, meu éden

Espinosa, meu éden

sexta-feira, 7 de março de 2025

3687 - Doutores Racionais

Para confirmar a minha imensurável ignorância, confesso que nunca descobri nem me dediquei a pesquisar e conhecer a obra artística de uma das mais importantes e icônicas bandas de Rap e Hip Hop do Brasil, os Racionais MC´s. Formada em 1988 pelos artistas paulistanos Mano Brown (Pedro Paulo Soares Pereira, 22 de abril de 1970), Ice Blue (Paulo Eduardo Salvador, 16 de março de 1969), Edi Rock (Edivaldo Pereira Alves, 20 de setembro de 1970) e KL Jay (Kleber Geraldo Lelis Simões, 10 de agosto de 1969), os Racionais superaram todas as barreiras do show business e alcançaram mais que simples sucesso, mas o respeito e a idolatria de milhões de brasileiros com a sua música e suas mensagens extremamente diretas, cruas e verdadeiras sobre a dura realidade das vidas das comunidades negras e faveladas do país, sobretudo dos jovens das grandes cidades. Infelizmente, por não gostar desse estilo de música ou talvez até por preconceito, o que é inadmissível, só agora, velho, é que comecei a conhecer e perceber a extensa e essencial obra dos quatro grandes caras da periferia de São Paulo. As letras das suas músicas são agudas, afiadas, viscerais, diretas, incômodas, atingindo em cheio e no alvo a hipocrisia e o preconceito tão arraigados na nossa sociedade. São descrições fieis de histórias cotidianas de luta contra a escravidão, contra o racismo, contra a violência estrutural e contra a imensa desigualdade social brasileira.



Mesmo desconhecidos por boa parte da população brasileira, muito por conta da falta de divulgação e do acesso restrito das músicas das populações periféricas aos canais radiofônicos e televisivos do país, os Racionais MC´s tiveram a sua fundamental relevância e o seu imenso prestígio reconhecidos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que, nesta quinta-feira, 6 de março de 2025, entregou o título de "Doutor Honoris Causa" aos quatro integrantes da banda formada em 1988 na cidade de São Paulo. Participaram da cerimônia o reitor da Unicamp, Antonio Meirelles; a pedagoga, professora e doutora Nilma Lino Gomes, madrinha dos homenageados; entre outros convidados. Tal honraria é outorgada a "pessoas que tenham contribuído, de maneira notável, para o progresso das ciências, das letras ou das artes; que tenham beneficiado, de forma excepcional, a Humanidade; ou que tenham prestado relevantes serviços à Universidade". A comissão que aprovou a concessão do título ao grupo de Rap reconheceu os integrantes como "intelectuais públicos que dialogam com o pensamento social brasileiro". 
Além desta gigantesca demonstração de reconhecimento, os Racionais MC´s estão sendo homenageados também no Museu das Favelas, com a exposição "Racionais MC’s: O Quinto Elemento", onde está disponível todo o universo da banda paulistana desde o inicio da sua já extensa trajetória. A curadoria é de Eliane Dias.



Parabéns aos quatro integrantes dos Racionais MC´s, Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, pelo talento musical e pela coragem e discernimento de gritar alto e em bom som ao mundo, em letras de versos genuínos e impactantes, as lutas e desafios do povo brasileiro. Prometo me dedicar a conhecer mais e mais das suas canções. Conhecimento nunca é demais, e nunca é tarde para adquiri-lo.   
Um grande abraço espinosense.





MÁGICO DE OZ
Edi Rock

Aquele moleque, que sobrevive como manda o dia a dia
Tá na correria, como vive a maioria
Preto desde nascença, escuro de Sol
Eu tô pra vê ali igual, no futebol
Sair um dia das ruas é a meta final
Viver decente, sem ter na mente o mal
Tem o instinto que a liberdade deu
Tem a malicia, que cada esquina deu
Conhece puta, traficante e ladrão
Toda raça, uma par de alucinado e nunca embaçou
Confia neles mais do que na polícia
Quem confia em polícia? Eu não sou louco
A noite chega e o frio também
Sem demora, ai a pedra
O consumo aumenta a cada hora
Pra aquecer ou pra esquecer
Viciar, deve ser pra se adormecer
Pra sonha, viajar, na paranoia, na escuridão
Um poço fundo de lama, mais um irmão
Não quer crescer, ser fugitivo do passado
Envergonhar-se se aos 25 ter chegado
Queria que Deus ouvisse a minha voz
E transformasse aqui num Mundo Mágico de Oz

Queria que Deus ouvisse a minha voz (que Deus ouvisse a minha voz)
Num Mundo Mágico de Oz (um Mundo Mágico de Oz)

Um dia ele viu a malandragem com o bolso cheio
Pagando a rodada, risada e vagabunda no meio
A impressão que dá, é que ninguém pode parar
Um carro importado, som no talo
Homem na Estrada, eles gostam
Só bagaceira só, o dia inteiro só
Como ganha o dinheiro?
Vendendo pedra e pó
Rolex, ouro no pescoço à custa de alguém
Uma gostosa do lado, pagando pau pra quem?
A polícia passou e fez o seu papel
Dinheiro na mão, corrupção a luz do céu
Que vida agitada, hein? Gente pobre tem
Periferia tem
Você conhece alguém?

Moleque novo que não passa dos 12
Já viu, viveu, mais que muito homem de hoje
Vira a esquina e para em frente a uma vitrine
Se vê, se imagina na vida do crime
Dizem que quem quer segue o caminho certo
Ele se espelha em quem tá mais perto
Pelo reflexo do vidro ele vê
Seu sonho no chão se retorcer
Ninguém liga pro moleque tendo um ataque
Foda-se, quem morrer dessa porra de crack
Relacione os fatos com seu sonho
Poderia ser eu no seu lugar
Das duas uma, eu não quero desandar
Por aqueles manos que trouxeram essa porra pra cá
Matando os outros, em troca de dinheiro e fama
Grana suja, como vem, vai, não me engana
Queria que Deus ouvisse a minha voz
E transformasse aqui num Mundo Mágico de Oz

Queria que Deus ouvisse a minha voz (que Deus ouvisse a minha voz)
Num Mundo Mágico de Oz (um Mundo Mágico de Oz)

Ei mano, será que ele terá uma chance?
Quem vive nessa porra, merece uma revanche
É um dom que você tem de viver
É um dom que você recebe pra sobreviver
História chata, mas cê tá ligado
Que é bom lembrar: Quem entra, é um em cem pra voltar
Quer dinheiro pra vender? Tem um monte aí
Tem dinheiro, quer usar? Tem um monte aí
Tudo dentro de casa vira fumaça, é foda
Será que Deus deve estar aprovando minha raça?
Só desgraça gira em torno daqui
Falei do JB ao Piqueri, Mazzei
Rezei para o moleque que pediu

Qualquer trocado, qualquer moeda
Me ajuda tio
Pra mim não faz falta, uma moeda não neguei
Não quero saber, o que que pega se eu errei
Independente, a minha parte eu fiz
Tirei um sorriso ingênuo, fiquei um terço feliz
Se diz que moleque de rua rouba
O governo, a polícia, no Brasil quem não rouba?
Ele só não tem diploma pra roubar
Ele não esconde atrás de uma farda suja
É tudo uma questão de reflexão, irmão

É uma questão de pensar
A polícia sempre dá o mau exemplo
Lava a minha rua de sangue, leva o ódio pra dentro
Pra dentro de cada canto da cidade
Pra cima dos quatro extremos da simplicidade
A minha liberdade foi roubada
Minha dignidade violentada
Que nada dos manos se ligar
Parar de se matar
Amaldiçoar, levar pra longe daqui essa porra
Não quero que um filho meu um dia Deus me livre morra
Ou um parente meu acabe com um tiro na boca
É preciso eu morrer pra Deus ouvir minha voz
Ou transformar aqui no Mundo Mágico de Oz?

Queria que Deus ouvisse a minha voz (que Deus ouvisse a minha voz)
Num Mundo Mágico de Oz (um Mundo Mágico de Oz)

Jardim Filhos da Terra e tal
Jardim Hebron, Jaçanã e Jova Rural
Piqueri, Mazzei, Nova Galvão
Jardim Corisco, Fontális e então
Campo Limpo, Guarulhos, Jardim Peri
JB, Edu Chaves e Tucuruvi
Alô Doze, Mimosa, São Rafael
Zaki Narchi, tem um lugar no céu

Às vezes eu fico pensando
Se Deus existe mesmo, morô?
Porque meu povo já sofreu demais
E continua sofrendo até hoje
Só que ai eu vejo os moleque nos farol, na rua
Muito louco de cola, de pedra
E eu penso que poderia ser um filho meu, morô?
Mas aí, eu tenho fé
Eu tenho fé em Deus