Não consigo imaginar um mundo em que pessoas de cor negra sejam tratadas como seres de segunda categoria, sem acesso a ônibus, escolas, banheiros e bares onde frequentam os brancos. Não consigo imaginar um mundo em que pessoas negras sejam caçadas como bicho, linchadas, penduradas em árvores e postes e enforcadas para a apreciação dos transeuntes. Aliás, consigo sim imaginar essa barbárie toda, com uma gélida, lancinante e dolorosa sensação na alma. Assim como me embrulha o estômago imaginar o massacre do holocausto na Alemanha ou do genocídio em Ruanda, dói-me profundamente saber cada vez mais sobre a injustiça, a violência e a desumanidade da escravidão e da segregação racial em alguns lugares do mundo.
Uma boa oportunidade para nos aprofundar nesse penoso assunto é assistindo com atenção à bela produção americana "Estados Unidos vs. Billie Holiday", um filme que trata da parte final da carreira da estupenda artista negra, enquanto toca sutilmente no maldito racismo tão enraizado na sociedade norte-americana. A atriz Andra Day brilha na pele da compositora e cantora de blues que, atormentada pelas lembranças de suas violentas e duras infância e adolescência, insiste em incomodar a racista sociedade com uma interpretação angustiante da canção que fala sobre os cruéis e desumanos linchamentos de cidadãos negros, pendurados pelo pescoço em árvores como se fossem uma fruta estranha. A insistência em expor o absurdo dos covardes assassinatos dos cidadãos de pele negra atraiu o ódio e a perseguição de uma instituição poderosa nos Estados Unidos, que usou dos mais pusilânimes e asquerosos estratagemas para prejudicá-la e impedi-la de continuar cantando.
O filme escancara a vida de uma mulher sofrida e bastante talentosa, apresentando-a sem subterfúgios, em variações entre a mulher firme, determinada e insubmissa e a outra mulher frágil, prostrada e subserviente, vivendo a dura existência com o auxílio de entorpecentes e o abrigo dos poucos amigos próximos. O filme é contundente, excruciante e repugnante, levando-nos a um estado de indignação com tamanha injustiça e desprezo com os sentimentos humanos. Mas é a consciência dos fatos que nos deve levar à busca da verdade histórica para podermos nos unir e lutar para que barbáries assim jamais se repitam. Confesso que pouco ou nada sabia sobre a vida da artista, muito menos sobre sua incômoda canção "Strange Fruit", composição de Lewis Allan, o que me levou a estudar muito mais sobre sua trajetória e obra. Assim é que cada dia que passa, continuo descobrindo e percebendo o imensurável tamanho da minha ignorância, que só poderá ser minimizada com o tesouro do saber.
O filme "Estados Unidos vs. Billie Holiday" é baseado no livro "Chasing the Scream" de Johann Hari, e mostra um especial momento da vida da cantora Eleanora Fagan Gough, nascida em 07 de abril de 1915 na Filadélfia e falecida precocemente aos 17 de julho de 1959 em Nova Iorque, aos 44 anos de idade.
Ano: 2021
Direção: Lee Daniels
Roteiro: Suzan-Lori Parks, baseado no livro de Johann Hari
Gênero: Drama, Biografia, Musical
Nacionalidade: Estados Unidos
Elenco:
Billie Holiday - Andra Day
Jimmy Fletcher - Trevante Rhodes
Harry J. Anslinger - Garrett Hedlund
Reginald Lord Devine - Leslie Jordan
Madame Fletcher - Adriane Lenox
Tallulah Bankhead - Natasha Lyonne
Louis McKay - Rob Morgan (IV)
Roslyn - Da’vine Joy Randolph
Agent Sam Williams - Evan Ross
Lester 'Prez' Young - Tyler James Williams
John Levy - Tone Bell
Agent Carter - Blake DeLong
Sadie - Dana Gourrier
Monroe - Erik LaRay Harvey
Joe Guy - Melvin Gregg
Mr. Jordon Green - Tristan D. Lalla
George Jessel - Joe Cobden
Ed Fishman - Alain Goulem
Para quem desconhece, é importante pesquisar e conhecer a história de um dos mais letais massacres racistas nos Estados Unidos desde o fim da escravidão, quando no bairro de Greenwood em Tulsa, Oklahoma, na noite de 31 de maio de 1921, brancos se reuniram para invadir armados o bairro dos negros por conta de uma acusação falsa de ataque de um rapaz negro contra uma menina branca. Em pouco menos de 24 horas, casas e lojas dos afrodescendentes foram derrubadas e incendiadas, com cerca de 300 mortos, centenas de feridos e milhares de desabrigados. Esta repugnante e hedionda brutalidade completou 100 anos agora. Demonstrando espírito de justiça e sensatez, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, fez uma visita histórica à cidade, assumindo a culpa das autoridades de então no massacre, enquanto pedia perdão oficialmente aos familiares das vítimas.
Infelizmente, o racismo persiste ainda amplo e forte no mundo. É preciso mais do que nunca educar as crianças, já que conscientizar os adultos insensíveis e retrógados parece quase impossível, para que nos tornemos um mundo harmonioso, sem radicalismos, intolerância, preconceitos e, sobretudo, sem ódio.
Racismo, NÃO!
Um grande abraço espinosense.